Semana passada tentei escrever um conto erótico e não consegui. Quando vi as notícias sobre as denúncias de abuso de crianças e mulheres dentro dos abrigos no Rio Grande do Sul, meu estômago se revirou. A catástrofe ambiental é devastadora, mas a catástrofe humana é absurda. A tragédia dentro da tragédia. Tamanho nível de violência no meio de uma dor já tão tamanha.
Eu sou sobrevivente de abuso e há anos trabalho com mulheres que são. Conheço na pele as marcas que ele deixa no corpo, porque vivi e cuidei de perto. Infelizmente, falar de prazer também é falar de cura.
Todas nós, mulheres, já fomos de alguma maneira machucadas. Sutis ou escancaradas, as violências são muitas, seja o assédio de cada dia, o abuso do passado e do presente, a repressão e o controle, as expectativas limitadas por causa do gênero, os direitos cerceados, os relacionamentos abusivos, a sobrecarga mental, física e emocional, a pressão estética, as cobranças injustas… ser mulher tem um preço caro no mundo.
Quando se trata de violência sexual, o buraco é fundo. Mulheres que já sofreram abuso têm muito mais chance de desenvolver depressão, ansiedade, comportamento autodestrutivo, sentimentos de isolamento e estigmatização, baixa auto-estima, transtorno de estresse pós-traumático, transtornos alimentares, dificuldades nos relacionamentos, tendência à revitimação e abuso de substâncias.
Por falta de proteção, informação e cuidado, muitas não associam o trauma com o comportamento que ele gera. Além de toda a dor já sofrida, muitas vivem os sintomas sem perceber que são sintomas, o que só gera mais dor e frustração.
Por exemplo, uma mulher que tenha sofrido abuso na infância e tenha se tornado uma adulta com comportamentos autodestrutivos pode acabar se identificando com tais comportamentos, pensando que o que ela faz é quem ela é, e de tal forma associar e acreditar que isto é parte da sua personalidade que fica difícil imaginar uma saída, afinal, é dificultoso não ser quem a gente é.
É difícil resumir um tema tão grande e grave em algumas poucas palavras, mas para você, para suas amigas que já passaram por isso, eu digo: é importante entender o que é sintoma e o que é você. Essa diferenciação é fundamental para que você se desvincule dos sintomas e caminhe em direção à cura.
Aqui preciso explicar que não falo cura como se ela fosse uma borracha mágica que apaga todos os pesares, mas sim como o resultado de um processo que te liga à sua força e te ensina a lidar com o que viveu, de maneira que você já não seja refém do trauma. Não quer dizer que nunca mais vai doer ou te afetar, mas que você vai encontrar recursos internos para lidar com os sentimentos difíceis e reencontrar sua alegria, seu sentido, seu prazer.
A cura pode levar tempo, mais do que a gente gostaria, mas é possível - sei porque vivi no meu próprio corpo e vi acontecer no corpo de centenas de mulheres com quem já cruzei nesses anos trabalhando com sexualidade. Quando penso na tragédia vivida no Rio Grande do Sul, quando imagino crianças e mulheres passando por ela no meio de tanta perda, sinceramente me falta fé na humanidade, me falta fé nos homens.
Mas a fé sempre me é restaurada por outras mulheres. Ver tantas de nós na luta, na ação, na política e no cuidado, encontrar jeito de ser uma delas, da maneira que for possível e com os recursos que tenho, é o que me faz ter esperança e continuar. Meu desejo-sonho-fome, é que a gente sempre encontre jeito. Que a gente não deixa a desesperança paralisar nosso agir no mundo.
E que a gente não esqueça que a luta contra a violência é contínua e a gente faz dentro de casa e dos lugares que a gente ocupa. Acolhendo, protegendo e acreditando nas crianças e mulheres, denunciando os agressores, cobrando políticas e mudanças, não passando pano nem varrendo pra debaixo do tapete.
É doloroso, eu sei. Muita coisa desencoraja. Então que a gente possa então ser sopro de força umas paras outras. Eu já vi cada cura bonita e imensa acontecer. É por isso que digo: minha fé mais verdadeira está na gente e na revolução que pode ser feita a partir da nossa revolta, da nossa coragem, do nosso amor.
— Sugestão Lasciva
A sugestão lasciva de hoje é a série Bebê Rena, escrita, dirigida e estrelada por Richard Gadd. Uma série densa, com atuações grandiosas, lindamente escrita, profundamente rasgante. Há quem diga que é uma história sobre stalking e é, mas é também sobre abuso. Não é leve, mas é potente para entender como os sintomas do trauma podem repercutir no corpo. Por isso recomendo muito, mas deixo aqui o aviso caso esse seja um tema particularmente dolorido para você. Está disponível na Netflix.
— Como ajudar o RS
Doação para ajudar mulheres e crianças:
Diversos pix para doação:
Ajuda para as famílias guarani:
— Para dar replay
Agora, para ir mudando um pouquinho o gosto dessa News, deixo esse vídeo sobre saber ver a poesia do sexo. Sim, poesia. Você já parou para pensar nas possibilidades poéticas que o sexo resguarda? Se não, já te adianto: além de prazeroso, ressignificar o que nos disseram que era sujo e feio, aprender a ver beleza no que nos dá prazer, no que acorda a pele, a alegria e o gozo, é um passos transformador para curar sua relação com o sexo e a sexualidade. Dá play aqui, deusa:
— VEM AÍ: Prazer&Delícias
Esse mês teríamos abertura da próxima turma do meu curso Prazer&Delícias, mas resolvemos adiar. Não sei se você sabe, mas metade das mulheres da equipe lasciva é do Rio Grande do Sul e essa tragédia mexeu com a gente. Então, decidimos deixar para o mês que vem.
Se você ainda não conhece, Prazer&Delícias é meu curso sobre sexualidade positiva, prazer e bem-estar sexual. É para todas que querem curar ou aprofundar sua relação com o próprio corpo e gozo. É um curso profundo e bonito demais. E você está convidada. Clica aqui para saber mais.
— Curadoria Lasciva
pra deixar o coração quentinho
um vídeo:
uma música:
mais um vídeo:
O que você sentiu lendo essa edição da news? Deixe um comentário, vamos conversar!
Lua, achei essa edição da news tão importante, obrigada por isso. Esse trecho aqui tocou fundo em mim, que estou bem no meio do processo de confusão de identidade, tentando entender o que sou eu de fato, e o que é reação ao trauma: "é importante entender o que é sintoma e o que é você. Essa diferenciação é fundamental para que você se desvincule dos sintomas e caminhe em direção à cura. "
Obrigada <3
Nossa, a-ca-bei de conversar sobre isso na minha terapia. Vitima de abuso quando criança, só agora, aos 45 anos, que comecei a entender o quanto essa (e outras tantas) violências masculinas que sofri transformou meu modo de me relacionar comigo e com os outros. E ainda, como essas experiências moldaram minha relação com o prazer. Spot on! Obrigada ;)